sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Trivial mas problemático


O que é trivial na sua vida? Até eu vir morar na África, muitas coisas do meu dia a dia eram triviais. Nenhuma delas um problema. Acho que eram tão triviais que eu nunca dei muita importância.
Por exemplo, cortar o cabelo. Por mais chato que seja, quando a gente precisa, em qualquer esquina se pode encontrar um cabeleireiro ou um barbeiro, caro ou barato, que dê conta do recado. Mas só depois de 3 meses aqui na África, quando a minha juba estava no limite é que eu percebi que aquilo não era mais trivial, era um problema.
Já tinha visto alguns salões espalhados pela cidade, então no dia que precisei, escolhi o mais arrumadinho e “vamu-lá”. Levei a esposa, claro, para me ajudar naquele momento crítico. O atendente, um jovem de uns 20 poucos anos. Perguntei-lhe se sabia cortar o meu cabelo (aqui > de 95% da população é negra). Ele disse, de forma não convincente, sei sim, não tem problema. Quanto é? São 100 meticais (na época uns 7 reais). Beleza. Então minha esposa entrou em cena, e foi-lhe explicar como era para se cortar. Pensei, agora eu fecho o olho e seja o que Deus quiser. Com  grande insegurança (ele nem sabia pegar na tesoura direito), ele começou a cortar aqui, ali, 30 minutos depois, ali aqui e aquela coisa maravilhosa, eu suando de medo de perder uma orelha, Cláudia quase pegando a tesoura da mão dele, não é assim não, é assim. Não corta aí não. Eu pensei, até que decidi e falei: - jovem, deixa essa tesoura de lado, pega a máquina 1 e capricha. Que diferença no manuseio daquele novo instrumento. Trinta minutos depois, enfim fui embora. Careca e traumatizado, claro.
Depois disso, numa ida a Maputo, comprei uma máquina para mim. Das 2 próximas vezes, Cláudia foi a barbeira. Mas quem disse que a gente sabia usar a máquina. Um barulho ensurdecedor. Parecia que estava avariada. Havia um parafuso que não estava bem regulado,  e que só depois, a vizinha nos ensinou a usar. Depois disso resolvi deixar o cabelo crescer de novo. Voltei ao Brasil nas férias e pude acertá-lo por lá. Mas como faria ao retornar? 3 meses depois, em viagem a Maputo, fui a procura de um novo salão. Encontrei um e no desespero entrei e encarei. Dessa vez o atendente sabia manusear a tesoura, mas mais parecia que estava podando uma árvore do que cortando um cabelo. Uma velocidade incrível. Ficou tudo repicado, tudo em pé, praticamente um corte de máquina com a tesoura. Desisti, compramos uma tesoura e  um pente e da próxima vez, a Cláudia faria o trabalho. Quando voltei de Maputo, pesquisando no site do consulado do Brasil em Maputo, descobri um guia para chegada em Moçambique. Nele, havia uma lista de salões recomendados para brasileiros. Tarde de mais, a partir de então, Cláudia virou minha cabeleireira oficial. As primeiras 2 vezes, não foram nada fáceis. O resultado foi ótimo. Mas fiquei de castigo num banco duro por mais de 1 hora, morrendo de medo de perder uma orelha. Agora ela já está craque, assim quando voltarmos, quem sabe ela não muda de profissão e abre uma barbearia? Bem, quem precisar é só falar. Demora, mas o resultado é muito bom.
Essa história toda para mostrar quanto uma coisa trivial, torna-se super problemática por aqui.  São muitos outros exemplos. É só você pensar em qualquer outro tipo de prestação de serviço. Arranjar o carro, não tem peça. Comprar coca-cola (aqui troca-se garrafas de 300 mL), acabou. Restaurante, temos 2, mesma comida nos dois, já enjoei. Shopping, só em Maputo, pequeno. Cinema, esquece, só na África do Sul. A descarga está vazando? Tem que comprar uma nova. Não há peça para reparo. Lixeiro, não tem. Queima e enterra. Correio, só na cidade. Em outubro tem eleições presidenciais, além de obrigatória, você tem noção de quanto é chata a justificação para brasileiros no exterior? Assim, a lista vai sem fim.
Lições aprendidas: 1) consultar antes o guia do consulado do Brasil para onde eu vou; 2) reclamar menos do Brasil, exceto da política, porque essa, só a graça...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Culinária Moçambicana – Parte 1

Caril de Camarão:
Para não só falar de coisas médicas ou tristes, um dos meus hobbies em Moçambique tem sido a culinária.
Em Moçambique, tanto a influência portuguesa, quanto a indiana, é marcante na culinária. A portuguesa obviamente devido a colonização. Já a indiana é um caso mais curioso. Moçambique foi um dos pontos de apoio de Portugal para o caminho das índias. Desde o século 19, muitos imigrantes indianos se instalaram na África do Sul e em Moçambique, fugindo da guerra com os ingleses. Depois se espalharam para o resto do continente. Atualmente em Moçambique, eles são os “donos” do comércio. É curioso ir ao centro da cidade fazer compras e encontrar as lojas indianas e os seus rudes vendedores. É vendo para entender.
Já o camarão é um dos principais produtos de exportação de Moçambique. A longa faixa costeira do oceano Índico é rica em muitas espécies. O mais famoso, o cobiçado camarão VG (tigre).
Dessa influência e combinação surge um dos pratos mais saborosos que aqui já desfrutei e que tenho o prazer de preparar e compartilhar com vocês. É o caril de camarão ou o curry de camarão. Não tem mistério.
Ingredientes (4 porções):
- 1 kg de camarão (quanto maior melhor), sem casca e sem cabeça;
- 2 cebolas picadas;
- 1,5 cm de gengibre fresco e espremido;
- 2 dentes de alho espremidos;
- 1 colher de sopa de pó de curry (se está familiarizado com a culinária indiana pode substituir pelos temperos separados, a proporção que quiser);
- 1/2 colher de chá de açafrão em pó;
- 1 pimenta vermelha pequena picada sem sementes (opcional);
- 500 ml de leite de côco;
- 1 colher de sopa de farinha de trigo;
- coentro fresco (opcional);
- 2 colheres de chá de sal.
Modo de Preparo:
Em um fio de óleo, doure a cebola, depois o alho e o gengibre, depois o pó de curry, depois o açafrão. Acrescente um pouco de água para desgrudar o fundo. Coloque o leite de côco até ferver. Acrescente os camarões e aguarde ferver novamente. Coloque o sal. Abaixe o fogo e deixe cozinhar por 15 minutos. Acrescente a farinha de trigo dissolvida em um pouco de água fria até obter a consistência desejada. Tampe e retire do fogo. Decore com folhas de coentro picadas e sirva com arroz branco e chapatis (pão indiano – ou então pão sírio).
Bom Apetite!
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terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Médico e o Monstro


Já ouviram falar da obra do autor Robert Louis Stevenson, Jekyll & Hyde?

Para quem nunca ouviu, trata-se de um médico (Dr. Jekyll) cientista que inventa uma fórmula mágica que o transforma inconscientemente num monstro (Sr. Hyde). Numa dessas transformações o monstro mata uma menina e faz outras atrocidades. Um advogado, amigo do Dr. Jekyll, investiga o crime e através de uma carta deixada pelo monstro, através da datilografia, desconfia tratar-se de seu amigo. Com o tempo e com as provas, Dr. Jekyll vai descobrindo que é a mesma pessoa que o Sr. Hyde. Com remorso das maldades realizadas por si, Dr. Jekyll decide não mais tomar a poção e começa a fazer obras de caridade. Em certo ponto, ele vê-se redimido, mas mesmo sem tomar a poção começa a sofrer a metamorfose involuntariamente. Como ele havia jogado fora a fórmula, não consegue inventar uma maneira de reverter as metamorfoses que tornam-se cada vez mais freqüentes. Percebendo que no fim tornar-se-ia Hyde permanentemente, Dr. Jekyll deixa um testamento dizendo que finalmente deixaria de ser um charlatão e tornar-se-ia em algo genuíno.
O discutido tema “o bem versus o mal” é a análise teológica mais freqüentemente discutida sobre esse livro. Mas eu não quero falar de coisas já discutidas, tampouco quero falar sobre teologia.
O que me fez a refletir sobre esse tema foi a minha própria figura, um cirurgião, um missionário, médico ou monstro?
A figura do missionário e do médico são míticas. Sinônimo de bom caráter, de caridade, de salvação.
A figura do cirurgião é mais controversa. Para alguns e para muito deles um “deus”. Para outros um terror. Existe coisa mais monstruosa que uma grande cirurgia. Todo aquele sangue derramado. Toda dor provocada. Por mais salvadora que seja, ninguém quer passar por uma.
O trabalho médico em terras africanas não é fácil. A carência de tudo, torna aquele que sabe um pouquinho mais num “deus”. Mas ninguém é “Deus”, temos limites técnicos, físicos, mentais e espirituais. O problema é uma questão de limites. O limite entre o que você sabe e o que você não sabe, entre o que você e o seu hospital suporta ou não. Muitas vezes, no hospital rural, esses limites são freqüentemente ultrapassados. Pergunto-me, estarei me transformando num monstro? Ou já sou um por natureza, por profissão?
A tentativa de salvação de uma vida também não é para qualquer um ou para qualquer lugar. As limitações estruturais também podem transformar um milagre num desastre. O que dizer das longas cirurgias de urgência que encontrariam uma vaga de CTI no Brasil e que aqui ficam ao bel prazer de técnicos de enfermagem (na maior parte das vezes 1 para cada 40 leitos!). Agora imagina essa situação, sem sangue disponível e/ou sem oxigênio e/ou com apagão noturno! Só a graça de Deus. E digo mais, ela existe. Prova disso é que muitos desses pacientes sobrevivem. Mas em outros casos... é o monstro atormentando mais uma vez.
Um monstro por não ter mais forças. Um monstro por não respeitar os limites. Quais são os limites dessa metamorfose? Será um sentimento de um missionário? Ou será um sentimento de um cirurgião? De um médico ou de um monstro? Limites... Deus me ajude.
Nota: para quem gosta de música, sugiro uma para reflexão:
Jekyll and Hyde – Petra
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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Lanterna de Cabeça

Como pode um hospital funcionar sem luz e conseqüentemente sem água? (a água depende de uma bomba elétrica)
Essa é uma pergunta que me faço todos os dias e até hoje não consigo responder.
A realidade dos hospitais africanos que conheço é dura. No que eu trabalho, parece pior. Há muito sofremos com falta de pessoal de enfermagem, falta de materiais de consumo hospitalar, falta de medicamentos. Mas o que mais me machuca, é a falta de luz. Como pode um hospital funcionar sem luz, refaço pergunta. A verdade é que ele funciona aos trancos e barrancos. Já estamos tão acostumados com a miséria do povo, com falta de saúde da população, o que é mais uma noite sem luz? Sem ao menos uma vela!
No Brasil, quando acontece um apagão é notícia para os meios de comunicação durante 1 semana. Lembro-me de quando estava na residência de cirurgia geral, no estágio de CTI, e numa noite chuvosa, um blecaute no bairro ocorreu e uma falha no gerador do hospital, fez com que todos enfermeiros e médicos tivessem que ficar ambuzando os pacientes entubados durante uns 30 minutos. Um desespero sem fim. Graças a Deus todos se safaram.
Aqui em Chicuque, os “apagões” são freqüentes. Alguns são programados (reparo da linha de transmissão). Outros vêm sem aviso. No verão (dezembro e janeiro) são muito freqüentes. No primeiro ano de trabalho aqui, até o mês de dezembro, não sofri muito com isso, pois o gerador do hospital funcionava. Contudo, na época das festas, a situação da luz foi tão grave, que o gerador avariou.
Na noite de ano novo daquele ano, o caos. Muitos acidentes automobilísticos chegando, um esfaqueado aguardando uma laparotomia e nada de luz. Na maternidade, muitos partos acontecendo. Como o gerador funcionava e o problema era novo, não havia nem velas disponíveis. Tive que vir em casa pegar algumas e distribuir pelas enfermarias. Com luz do celular, fazíamos os partos. A luz só retornou depois da 1 hora da madrugada. Com muito receio, encarei a laparotomia, dessa me safei.
No ano que se seguiu nada foi feito pelas autoridades do hospital e do governo, na verdade, até hoje, 20 meses depois, tudo continua quase na mesma. Ou seja, continuamos sem gerador central. O que mudou é que agora temos lamparinas de querosene nas enfermarias (muitas vezes sem combustível), e a minha mais do que útil lanterna de cabeça. Depois de muita luta pessoal, consegui adquirir um gerador menor para uso exclusivo do bloco cirúrgico. Aliás, hoje (segunda-feira) estreamos o aparelho, em um daqueles cortes programados das 8 até às 14 horas.
Nesse longo período sem gerador, muitas outras situações tenebrosas me afligiram. Cesareanas aqui são o grande volume de urgências cirúrgicas noturnas. Dessa maneira, não foi 1 ou 2 casos que me surpreenderam pela falta de luz. Em 3 oportunidades tive que fazer a cesareana do início ao fim apenas com a salvadora lanterna de cabeça. Um desses casos a paciente era soropositivo. Imagina o estresse.
Bom esse é o meu lado pessoal, mas as enfermarias também ficam largadas. Os pacientes não recebem medicação adequadamente, quando recebem. Só a graça de Deus, para que os doentes graves atravessem uma dessas noites. Muitos, entretanto, não tem a mesma sorte.
O interessante é que apesar de todo esse grande problema, até hoje, nunca ouvi nem na rádio, nem na televisão, nenhuma notícia a respeito, nenhuma reclamação da comunidade. Quanta diferença. Quanto conformismo. Quanta tristeza. O pior é que apesar das melhorias, coisas bizarras continuarão acontecendo, por exemplo, a gasolina do gerador há de acabar e um dia vou ser surpreendido por isso (falta de manutenção). Noutro dia, num corte surpresa, quem disse que vamos encontrar o homem que liga o gerador (vai estar bêbado em algum lugar). Não adianta reclamar, nem alertar, é só estar preparado. Viva a lanterna de cabeça!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Falta de Tempo - Rotina diária!

Vida de médico não é fácil. De cirurgião geral é um pouco pior. Vida de missionário é renúncia. Imagina agora a bomba de tudo isso junto! Não estou falando isso para me gabar. Na verdade, no momento estou sofrendo. Ontem quando iniciei este blog tinha mil coisas em mente já prontas para escrever. Mas é como se algo a mais não deixasse. Esse algo aqui, chama-se "urgências".
Imagine um hospital no meio de uma rodovia federal (a principal do país - que corta do sul ao norte de Moçambique) que cobre uma área de cerca de 500.000 habitantes. Agora imagina uma série de acidentes acontecendo nesta rodovia na mesma tarde e noite e você sendo o único médico para atendê-los.
Foi assim o dia de ontem: fui chamado para o Hospital pois acabara de chegar 1 acidente de viação (é assim que chamam aqui) com 2 vítimas. Controlei a situação, voltei para casa. Dez minutos depois, o telefone toca, outro distrito trazendo mais 1 caso de atropelamento, controlei tudo de novo, voltei para casa. Vinte minutos depois, mais 1 caso do primeiro distrito, queda de bicicleta, TCE moderado. Voltei para casa, 1 minuto depois, raios, dessa vez não deu nem para ligar o computador, 1 atropelamento há minutos, trazido pelo próprio agressor (aqui não tem SAMU, o doente chega de qualquer maneira), e este, para sua infelicidade, tinha sofrido um TCE grave, já chegou nos últimos suspiros, pouca coisa para fazer, infelizmente. 21:30, quem sabe agora eu consigo terminar meu blog. 30 minutos depois, tô cansado, vou mesmo é dormir, amanhã tem mais e nunca se sabe o que vem por aí. Lembra daquele paciente nos últimos suspiros, pois é, o povo daqui é forte, só morre no meio da madrugada, aí eles me chamam de novo só para confirmar o óbito. Já se foi o sono.
Esses foram os acidentes após as 17 horas, não vou contar o restante do dia, nem mesmo os casos não traumatológicos, senão vocês vão achar que estou brincando.
Bem, pelo menos hoje tenho tido tempo para terminar a primeira parte do site. Aquelas idéias, espero que retornem com o tempo. Caso contrário, com certeza novos casos vão aparecer. Só espero que tenha mais tempo para ficar à toa!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Saudações

Caros à toas!

Obrigado por gastarem seu tempo à toa lendo meu novo blog. Há muito tempo tinha o desejo de iniciar esse trabalho, mas a preguiça sempre foi mais forte. Há mais de 2 anos trabalhando como cirurgião em terras africanas, já acomulei muita experiência e muitas histórias que gostaria de compartilhar.
Que médico que nunca sonhou em fazer um trabalho missionário? Bem eu sempre sonhei e digo que já realizei esse sonho. A essência médica é missionária. Não há trabalho mais pioneiro e recompensador do que a missão, tendo um gostinho a mais a transcultural.
O meu objetivo maior é levar a você que sempre sonhou, mas nunca teve a oportunidade de ir ao campo, um pouco do dia-a-dia do médico missionário, especialmente o cirurgião, que é sem dúvida, uma das figuras mais importantes e mais necessárias em qualquer hospital missinário, especialmente quando se trata de África.
Sugiro que antes de continuar a acompanhar esse blog, gaste um pouco de tempo lendo a meu respeito e sobre o lugar que eu trabalho, dessa maneira, você poderá se contextualizar melhor e entender melhor o que eu quero dizer.
Tentarei sempre responder as críticas e perguntas, portanto, não se acanhe, porque em missão não há lugar para timidez, mas muito trabalho para os à toas. Então vem comigo.

Eduardo Maia.