terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Sistema de Saúde de Moçambique

O sistema de saúde de Moçambique é bem diferente do nosso. Por mais que se tente copiar isso ou aquilo do sistema brasileiro, a falta de tudo limita o sucesso do mesmo. Isso se podemos dizer que o SUS é bem sucedido.
Os serviços de saúde não são 100% grátis. Há uma cobrança simbólica para cada tipo de serviço. Por exemplo, uma consulta ou uma receita médica custa 5 meticais, cerca de 25 centavos de real. Cada dia de internamento fica em 10 meticais. Uma cirurgia custa 100 meticais. As vezes, pela desorganização, ou motivos sociais, esses valores não são devidamente cobrados. Um detalhe é que o estrangeiro tem uma tabela de tarifas diferentes (cerca de 10 vezes mais cara). Por exemplo, a consulta passa a ser 50 meticais (cerca de 2,50 reais). Alguns medicamentos são grátis como os do coquetel anti-HIV, os antimaláricos e o tratamento da tuberculose e hanseníase.
A falta de trabalhadores de saúde é generalizado. Não há médicos, enfermeiros, e auxiliares ou técnicos de enfermagem suficientes. A falta de recursos é tão grande que muitas vezes não há dinheiro para novas contratações, nem mesmo para faxineiros. Assim o sistema anda sobrecarregado. Os profissionais são sujeitos a escalas desumanas, as férias são sempre sacrificadas, e os salários sempre baixos e sem reajustes. Nesse momento que escrevo, uma greve no setor de saúde está sendo organizada para o dia 25 de setembro, feriado nacional. Devido algumas heranças comunistas, greves em Moçambique são sempre algo complicadas, mais ou menos inaceitáveis pelo governo, imagine vinda do setor da Saúde, vejamos.
Na África, falta de mão de obra qualificada sempre foi um problema. Na área de saúde, arranjaram uma maneira de tentar aliviar esse problema. Criaram cursos profissionalizantes de medicina, cirurgia, pediatria, anestesia, enfermagem, etc. Assim hoje, grande parte da mão de obra é composta por esses “técnicos” que fazem o mesmo trabalho do enfermeiro superior, do médico e alguns especialistas.  A grande sacada dos governantes tem lógica simples. A formação de um médico é longa e cara. O seu salário é alto. Ele faz muitas exigências. Ele raramente quer permanecer no interior. Já com o curso técnico, enxuga-se no tempo de formação, no salário, ele permanece onde é mandado e faz praticamente, senão o mesmo trabalho de um médico e de alguns especialistas. Simples assim. Nem tanto. Mesmo assim faltam técnicos, assim muito do serviço deles ficam por conta de enfermeiros de nível básico ou médio, que acabam prescrevendo o que eu chama de coquetel padrão (um antibiótico e um analgésico ou um antimalárico com um analgésico).
Uma outra forma de “tapar esse buraco” foi a contratação de médicos estrangeiros. Pela íntima relação no passado com o bloco socialista, existem em Moçambique muitos médicos cubanos, chineses e até vietnamitas. Os cubanos são a maioria. Vem através de um convênio direto com o governo cubano. Como em Cuba o médico recebe uma miséria (cerca de 20 dólares/mês – acredite se quiser), a vinda deles para cá é uma forma de receberem um pouco mais (cerca de 500 dólares/mês – o governo Moçambicano paga 1000, mas eles tem que devolver 500 para os cofres do Fidel). Como eles mesmo me dizem, essa é a chance deles poderem voltar e comprar um televisor.
Em Moçambique existem apenas 4 faculdades de medicina que juntas formam menos de 100 médicos por ano. Duas delas  são bem novas, uma privada e outra pública, e ainda não formaram nenhum profissional. As faculdades públicas (subdisiadas pelo governo) cobram uma taxa simbólica semestral por cada cadeira. O currículo que durava 7 anos, baixou para 6 anos em 2009.  Após a graduação o médico é enviado para o distrito (interior) onde obrigatoriamente tem que permanecer por no mínimo 2 anos, como forma de “pagar” o subsídio do governo. Apenas após esse período é que ele tem o direito de voltar para trabalhar na capital ou de fazer uma residência médica ou mesmo de clinicar de forma privada.
Clínicas particulares são raras em Moçambique. Estão concentradas na capital. Contudo, em Moçambique, há apenas um pequeno hospital geral privado. Além disso, existe uma clínica privada dentro do principal hospital do país. Foi a maneira que alguns médicos, muitos deles envolvidos na política, encontraram para arrecadar alguns dólares a mais no fim do mês. Dessa forma, criaram dentro da instituição pública uma área VIP. Em horários especiais são feitas cirurgias exclusivamente para esse público. Dizem os boatos que o atual presidente da república está envolvido na construção do primeiro hospital privado de Maputo.
Em suma, se você um dia vier em Moçambique, torça para não ficar doente. Se isso acontecer, vá a um centro de saúde ou a um hospital mais próximo, pague um preço mais caro que os outros pela consulta, seja atendido por um técnico ou por um cubano, receba uma receita padrão, dê sorte de encontrar o medicamento prescrito e seja o que Deus quiser no seu tratamento. Na volta ao Brasil pense duas vezes antes de reclamar do SUS. 

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A Roda


Moçambique não é um país violento (comparado com o Brasil). Pelo contrário, as oportunidades que tive de andar pelas ruas de Maputo, mesmo a noite e no centro, me senti bem seguro. É claro que sempre ouvimos notícias de alguns pequenos assaltos e até de seqüestros. Entretanto já fomos abordados muitas vezes por policiais pedindo o nosso passaporte, perguntando – o que é que vocês estão fazendo a essa hora da noite aqui? Dizem que no passado era pior e hoje já é bem melhor. Os ladrões na maior parte das vezes, são os de galinhas. Roubam pequenas coisas. Os principais alvos são os carros. O nosso carro já foi vítima algumas vezes. A primeira vez foi quando fomos de férias para o Brasil e deixamos o carro estacionado na Igreja (com vigia). Certo dia, ainda no Brasil, recebo um email dizendo que roubaram o meu carro. Assustado, pensei: como é possível se estava na garagem com vigia? Mas não roubaram o carro e sim do carro. Retiraram as luzes do pisca, retrovisores e faróis. A segunda vez, foi quando a passeio por Maputo, tínhamos feito muitas compras e havíamos deixado no porta-malas como de costume. Fomos a um restaurante à noite. Quando voltamos, vimos que a janela havia sido quebrada e tudo que havia no porta-malas se fora. O rádio nem foi tocado! Mas nada supera a experiência da roda.
Um amigo missionário alemão tem um carro igual ao nosso. Certo dia, ele teve que viajar para Maputo. Como tinha estourado seu pneu sobressalente e não havia como comprar outro aqui, ele pediu emprestado o do meu carro. Beleza. Quando ele voltou, não estávamos em casa então ele deixou a roda na casa de hóspedes (tipo um hotel da igreja) que fica ao lado da minha casa. No dia seguinte quando fomos lá pegar o pneu, a diretora da casa diz que alguém entrou lá à noite (mesmo com o vigia) e roubou a roda.
É comum aqui a venda de peças automotivas pelas estradas, principalmente pneus, rodas e acessórios. Na verdade, na ocasião do primeiro roubo, após procurar em todas as lojas de Maputo, tivemos que recorrer ao “mercado negro” para adquirir de volta (literalmente) as peças roubadas. Dessa forma, mandamos pessoas alertarem revendedores dessas peças aqui em Maxixe que o meu pneu, assim, assim, assado, havia sido roubado. Contudo, mais de um mês se passou e nada de aparecer o pneu. Sempre que eu passava de carro pela estrada ou ia aos mercados procurava minha roda, nada. Assim, sem solução, tive que pedir um amigo que foi a Maputo para comprar-me outra roda e pneu sobressalente para o meu carro. Mais um prejuízo.
Cerca de 6 meses depois eu fui dar uma volta de bicicleta. Na verdade tinha planejado de fazer uma grande jornada de cerca de 50 km (ida e volta) até outra cidade. Ainda no início da viagem, do outro lado da estrada vejo um pneu parecido com o meu, a mostra no meio fio da estrada. Pensei, é impossível, já se passa tanto tempo, devo ter visto errado, na volta eu confiro, não quero perder a concentração da minha pedalada. Na volta, bastante cansado e já completamente esquecido da roda, passo em grande velocidade pelo local aonde o pneu estava (o lugar é uma grande descida). Mas de relance, vejo novamente o pneu e agora convencido, dou uma grande freada e retorno ao local. Aparece uma moça que estava cuidando da “loja”. Pergunto pelo dono. Não estava. Explico que aquele pneu era meu, que havia sido roubado. Ela desconversa e eu insisto em falar com o seu chefe. Consigo o seu telefone, mas ele não atende. Bastante agitado, saio a procura de um amigo para ver se podia me ajudar naquela inusitada situação, mas ele não estava em casa. Já era fim de tarde, começava a escurecer então eu resolvo continuar o meu caminho de volta para casa (faltava uns 6 km). Inconformado, decido mudar a rota e ir diretamente para a esquadra da polícia dar queixa. Chego lá todo suado, com roupa de ciclista, uma caricatura, reclamando que o meu pneu roubado estava sendo vendido no meio da estrada. Os policiais foram bastante simpáticos comigo (porque com alguns “suspeitos” que traziam tratavam como animais). Eles conheciam o sujeito dono da loja. Decidiram ir comigo até lá. Chegando no local, confiscaram a roda e pediram para o dono ir até a esquadra. Ele foi mas levou outro sujeito consigo. Na investigação, o dono disse que apenas estava revendendo o pneu que pertencia a esse outro sujeito. Este disse que havia adquirido o pneu de outro sujeito “desconhecido”. Me perguntaram como eu tinha certeza que aquele era o meu pneu/roda roubado. Foi fácil, eu tinha uma foto no meu celular tirada antes do pneu ser roubado ainda no meu carro. Como a única coisa que eu queria era o meu pneu de volta (na época custava cerca de 400 reais), e os outros também não queriam confusão, decidimos que eles devolveriam o pneu e eu não daria queixa de roubo. Já bem escuro, ainda tive que voltar para casa, pegar o carro e voltar a delegacia para pegar o pneu. Mas valeu a pena aquela longa jornada. Muitos me chamaram de louco, dizendo que alguém poderiam vir a minha casa ou me agredirem na rua. Fiquei preocupado durante um tempo. Graças a Deus nada disso ocorreu e já se passam 12 meses. O único problema é que agora fiquei com um sobressalente a mais. Alguém quer comprar essa roda?

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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A vida como ela é

Em tempos de modernidade, um grande desafio é viver com simplicidade. Viver sem alguns confortos da grande cidade. Essa é ainda a realidade do campo missionário. Mas não é de toda ruim.

Na verdade, ainda nos consideramos privilegiados por tudo que temos. Quando pensamos na África, mais especificamente, em Moçambique, pela primeira vez, pensamos em algo muito mais primitivo, contudo em muito nos surpreendemos.

O básico: luz, água e telefone. Temos, mas as vezes... A luz, como já referi em outro artigo, de vez em quando desaparece. Normalmente na hora que você mais precisa dela. A água vem do poço artesiano do hospital. É de boa qualidade. Depende de bomba elétrica. Até ano passado, não tínhamos uma caixa d’água, assim ficávamos freqüentemente sem água também. Uma coisa curiosa é o chuveiro elétrico. Há 2 anos foi abolido em nossa casa, devido a um defeito na tubulação. Agora, tomamos banho de caneco. E digo que é bom. E a economia da água é absurda, não é Juju e Felipe? (faça o teste em casa). Telefone aqui é celular. A etapa do fixo foi transpassada pela nova tecnologia. Assim em qualquer lugar que você vá e qualquer pessoa, já tem um aparelhinho. Pena que a rede não é confiável. As vezes, some o sinal, fica um, dois, mais dias sem sinal.

O moderno: televisão, internet. Essas novas tecnologias também estão disponíveis. Em Moçambique temos 3 canais abertos de televisão. Uma do governo, outra duas privadas, sendo uma delas, a mais nova, uma filial da rede Record. Os programas mais famosos por aqui são as novelas brasileiras. Normalmente chegam com algum atraso. A Record passa suas mesmas novelas. As outras duas passam mais novelas da Globo. Existe também a TV a cabo (em Maputo) ou a satélite (todo o país). A TV em satélite é muito bem servida, inclusive com canais brasileiros com Record, Globo, PFC, Record News e outros. A internet também está presente. Infelizmente está longe de ser tão confiável ou barata. A verdade é que paga-se caro para um plano de banda larga, mas o serviço funciona quando quer. Não adianta reclamar. Não há abatimento na conta (mesmo quando ficamos 15 e até 30 dias com o serviço indisponível!). Existe aquela internet de flash drive que vem pelo celular. Mas da mesma forma é muito cara e não confiável.

O comércio aqui ainda é bem rudimentar. Como existe uma grande dependência dos produtos externos, a disponibilidade dos produtos é oscilante, bem como o preço. Não consigo explicar a maneira de compra. Existem os indianos (a maioria – roupas, alimentos industrializados), os portugueses (material de construção) e os sulafricanos (supermercado geral) Os moçambicanos estão mais restritos ao comércio informal (dubanengues), nas feiras populares e na revenda de produtos “doados”.

Os meios de transporte comerciais são o avião e os ônibus (machimbombos). O avião ainda para poucos tem rotas da capital da província (Inhambane) para Maputo e Joanesburgo. Para outros lugares, pode-se pegar esses ônibus, que são muito velhos e viajam superlotados (de pessoas e de outras coisas). Para deslocamentos mais pertos, existem os “chapas” ou vans, que estão espalhadas por toda a África e são de longe o tipo de transporte mais difundido, mas totalmente informal, e claro, inseguro e lotado.

Um detalhe: por aqui dirigi-se do lado do esquerdo (volante à direita), algo difícil de se acostumar, que prega alguns sustos no início, por exemplo, quando você vai atravessar a rua e olha para o lado errado.

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sábado, 4 de setembro de 2010

Manifestações em Moçambique:


Alguns de vocês provavelmente já devem ter ouvido ou lido a respeito das manifestações atuais em Moçambique.  Alguns já enviaram emails perguntando sobre a nossa situação.
O mais importante é que estamos todos bem. O problema está relacionado com o súbito aumento dos preços dos alimentos, combustíveis, água e luz nos últimos 2 meses. Como a população não tem nenhum reajuste salarial há mais de 1 ano, a parte mais desfavorecida, resolveu sair as ruas e provocaram manifestações na quarta-feira com alguns mortos e muitos feridos na cidade de Maputo (capital do país). A cidade permaneceu em estado de sítio até ontem. Como moramos no interior, não fomos atingidos por estas manifestações. Pelas notícias boca a boca, nem seremos. Além disso, nesta última semana nossa internet tem estado frequentemente fora do ar. Dessa maneira, tem sido difícil atualizar o blog e enviar emails. Peço a todos paciência.
Ainda peço que continuem intercedendo pela situação instável do país e em favor dos muitos que estão literalmente passando fome.


Atenciosamente.