quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O peixe de cada dia


Eu moro em frente de uma grande baía. A chamada baía de Inhambane. Ela é uma grande fonte de renda para muitos bitongas e matsuas (tribos locais). Daí muitos pescadores, a maioria de forma tradicional, com pequenos barcos a velas (apelidados de “dhows” ou jangadas moçambicanas), com redes, varas ou manualmente, extraem grande quantidade de peixes e frutos do mar todos os dias. Barcos maiores as vezes aparecem. Existem 2 carcaças de barcos médios que estão encalhadas na praia a muito tempo e são inclusive visíveis no Google Earth.
Normalmente o período de preferência da pesca é o da maré baixa. Dessa maneira eles podem andar pelos bancos de areia que se encontram no meio da baía. Também é na maré baixa que as mulheres catam manualmente os siris, as ameijoas e os mexilhões nos mangues das praias.
Algumas épocas do ano, como em todo lugar, o período da pesca é mais abundante. É o que acontece agora no verão em que a chuva traz consigo mais alimento e grandes cardumes de peixes, bem como a dos camarões (grande riqueza moçambicana).
O ponto de embarque e desembarque da maioria dos barcos é literalmente em frente da minha casa. Então todos os dias eu ouço os barcos chegarem e a tocarem suas buzinas, avisando suas chegadas. Nessa hora, um mundo de gente desse a praia para comprar o pescado fresco. Na maioria pequenos peixes. Alguns compram para o sustento próprio, mas muitos, especialmente as mulheres com bacias de plástico, compram e levam o pescado para revender em mercados nos bairros mais distantes ou mesmo na ponte ao lado aqui de casa, a fim de garantir o pão deles de cada dia. O fato interessante é que quando o peixe chega é a maior barulheira na praia. Além disso nessa época quente, quando o pescado é de grande volume como o de ontem, o cheiro que vem da praia é impressionante. E é capaz de infestar a minha casa e até o hospital por horas.
O peixe de cada dia faz parte da alimentação dessa comunidade. Pena que eles só tem condições de comprar aqueles pequeninos. Os maiores e de melhor qualidade são caros e acabam por serem exportados através de pequena cooperativa que também funciona aqui perto.
Essa parte da cultura e da vida diária dessa gente, ajuda-nos a pensar o quanto temos e o quanto o povo daqui luta para garantir o peixe e o pão de cada dia.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Nomes Moçambicanos - Parte 2

Uma parte interessante da cultura e da história moçambicana são os nomes das localidades, cidades ou municípios. A maioria dos nomes tem origens tribais ou familiares. Contudo, alguns provém de nomes de personalidades, outros de origem portuguesa, outros de fontes duvidosas.
Começamos por Maputo, capital de Moçambique. Após a independência em 1976, de Portugal, a feitoria Lourenço Marques, teve seu nome mudado através de um comício pelo primeiro presidente, Samora Machel. O nome é devido ao rio que corta a cidade.
Xai-Xai é o nome da capital da província de Gaza e teve seu nome modificado também após a independência. Outrora, chamava-se João Belo, um antigo administrador.
Inhambane capital da província do mesmo nome, foi o local de desembarque de Vasco da Gama em 1498 rumo a Índia. Ao desembarcar para reabastecer, foi bem recebido e chamou o local de “Terra da boa gente”, daí o nome.
Nampula, Chimoio, Beira, Tete, Quelimane são outros nomes de capitais provinciais, mas não vou comentá-las pois não tive o privilégio de conhece-las.
Maxixe é o nome esquisito da minha cidade. O nome não tem nada a ver com a dança brasileira. A lenda diz que o nome veio porque a localidade fica na passagem da estrada nacional que liga o sul ao norte do país. Como era e ainda é o ponto de parada das pessoas em viagem para fazer xixi, daí Maxixe.
Chicuque, o bairro no qual vivemos tem a origem do nome em lenda semelhante. Dizem que os portugueses quando avistaram o lugar viram algumas crianças usando uma parte do coqueiro que chamam aqui de chicute. Ao perguntá-las como chamava-se o lugar, elas pensaram que estavam perguntando qual o nome daquilo que estavam a brincar, traduzindo para o que entenderam chamaram o lugar de Chicuque.
Dentro de cada cidade existem muitos distritos, bairros e localidade. Só vou listar aqueles nomes que vem na minha mente, veja que nomes engraçados: Matacalane, Sujeira, Matadouro, Pembe, Pemba, Panga, Dambo, Mabil, Manhala-Rex, Chambone, Macupula, Nhamaxaxa, Nhambirro, Tinga-Tinga, Linga-Linga, Mongue, Rumbana, Matingane, Mocuduone, Inharrime, Inhamussua, Jangamo, Bato, Cambine, Sitila, Quissico etc, etc, etc. A verdade é: não existe nome normal.
No início do meu trabalho aqui, era o maior sofrimento, porque chegava uma paciente da roça eu tentava perguntar de onde ele vinha, ela dizia: vivo em Xibabachila, eu respondia: heim? Vitrola!

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O carro queimou!

A onda de violência no Rio de Janeiro essa semana fez me pensar o quanto o Brasil precisa mudar ou se é possível mudar. Já diz o ditado, violência gera violência. Mas o que me inspirou escrever esse post foram os inúmeros carros e ônibus queimados.
Veja a foto abaixo:


Há um mês atrás, o meu chefe veio passar uma semana aqui para ministrar um treinamento. No fim da tarde, estamos na sala trabalhando no computador e começamos a ouvir um tumulto do lado de fora. Como nossa casa fica a beira da estrada, de vez em quando acontece de passar um bando de gente fazendo barulho, falando alto. Então pensamos que era mais um desses movimentos. Contudo, a zoeira não diminuía, resolvi olhar pela janela do quarto e vi uma nuvem de fumaça. Pensei, estranho estão a queimar lixo na rua? Mas deixei para lá.
Alguns minutos depois, já escuro, fui chamado no hospital para avaliar um doente. Quando entro na ambulância que veio me dar carona (para andar 200 metros – que folga!), o motorista me pergunta: “viste o carro a arder?” Surpreso, eu respondo: - não, aonde? – “Aqui do lado da sua casa, em frente da igreja”. Então ele dá meia volta e há 20 metros da minha casa o carro em fumaças, igual aqueles que vimos nas cenas dessa semana na televisão no Rio, mas ao lado da minha casa.
Pelo menos, depois soube da história. Diferentemente do Rio, o carro pegou fogo por causas naturais, ou seja, por falta de manutenção adequada e não por bandidagem. Pena para a dona, viúva, que contava com o carro para fazer suas compras e dependia do filho, alcólatra, para dirigir e fazer manutenção do carro.
Depois lembrei que quando a gente anda pelas ruas de Maputo, é comum vermos esqueletos de carros no meio das ruas. Alguns com tijolos como rodas. Outros, queimados como aquele.
Graças a Deus, dois dias depois, os responsáveis vieram e retiraram aquele esqueleto carbonizado do acostamento do lado de casa. Pelo menos deu tempo de tirar essa foto e registrar esse fato que não acontece apenas no Rio de Janeiro, mas também em Chicuque. Espero que essa onda acabe logo.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Nomes Próprios Moçambicanos

É interessante o quanto a gente aprende a respeito de uma cultura a partir dos nomes próprios.
Em Moçambique sempre me surpreendo com esse assunto e a cada dia aprendo uma coisa nova. O interessante é que aqui também  foi colônia portuguesa e fala português, mas tem características dos nomes tão diferentes do Brasil. É claro, que como os nomes brasileiros têm influência das línguas indígenas, aqui os nomes também têm influências dos dialetos e das tribos africanas. Mas não é só isso. Ainda existe a influência da língua inglesa (África do Sul), dos indianos e de nomes cristãos (comuns também no Brasil) e dos mulçumanos (árabes).
O primeiro ponto de interesse é o processo de nomear as pessoas. Diferentemente do Brasil que os pais começam a escolher o nome do filho ou da filha muito antes de nascer, por aqui, isso só é revelado, na maior parte dos casos, quando o bebê completa 1 mês de vida e é oficialmente apresentado aos familiares. Até lá o bebê é tradado como “inominado de fulana de tal”.
Em segundo lugar está a marca da sociedade paternalista. Como no Brasil, os nomes e sobrenomes paternos são os normalmente herdados. Contudo, por aqui, quase todos os filhos e as filhas herdam o primeiro nome do pai. Assim, se o pai chama Pedro e a filha Maria, o nome completo será Maria Pedro (mais o sobrenome – aqui chamado apelido, normalmente um nome tribal, familiar, também paterno). Nos casos de mãe solteira a Maria filha da Marta vai se chamar Maria da Marta, bem lógico.
Outro ponto cultural que eu demorei acostumar ou entender é uma pessoa que não tenho intimidade, chegar e me chamar de pai ou de filho. A lógica também é simples. Se o nome do pai da Maria é Eduardo ela chega e me chama de pai, do nada, mesmo sendo mais velha do que eu. A mesma coisa acontece se o nome do filho for esse, o meu título para ela será filho.
Agora quanto aos nomes propriamente ditos, como no Brasil, aqui encontro cada um. É comum o uso de nomes com algum significado. Assim, sempre encontramos uma Esperança ou uma Felicidade. Ou um Sete ou um Relógio. Mas também nomes ingratos como Castigo são comuns. De uma lista de nomes de pacientes que eu tenho, os nomes masculinos mais comuns são: Alberto, Antônio, Acácio, Armando, Augusto, Carlos, Enosse, Ernesto, Eugênio, Hilário, Januário, João, José, Samuel, Simião, Zaqueu. Os nomes femininos mais comuns são: Admira, Amélia, Artimisa, Esperança, Felizarda, Florinda, Graça, Isabel, Laura, Madalena, Matilde, Rosa, Victória.
Quantos aos uma pouco mais diferentes, temos os femininos: Germelia, Hentiana, Leocaldi, Marface, Rejelia, Rima, Saugeneta, Tenelia, Zubaida, Zaldina, Laquinisa, Delência, Eventina, Salita, Ismar, Emelina, Dêmica, Humaria, Ednércia, Zaina, Zaida, Yulica, Rojasse, Adozinda, etc
e os Masculinos: Zondinane, Momad, Issufo, Jable, Jossai, Adil, Olito, Fanequiço, Abdul, Abatu, Micas, Ebenizário, Magul, Manuessa, Matessuane, Agy, Milice, Egas, Chimahane, Querito, Lilito, Mussa, Cuamba, Abenildo, Camico, Canique, Somar, Xadreque, Belizardo, etc 
Bom, se você ainda tinha dúvidas do nome que gostaria de dar para o seu filho ou filha, quem sabe esse post não o/a inspirou.
Abraços.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O fascinante mundo das bicicletas

No meu último post comentei como me sinto um ET por aqui, especialmente quando ando de bicicleta. Pois é, essa semana estava dando minhas voltas e, aquela mesma história, todo mundo olhando eu passar.
Comecei a pensar, será que é só aqui que é assim? Me lembrei que no Brasil, quando comprei essa mesma bicicleta, usei pela primeira vez no interior de Minas. E era a mesma coisa. Ou seja, não era a cor da minha pele ou a bicicleta, mas o ciclista e o fascínio que o esporte traz, que fazem o mundo parar para ver.
No Brasil, o ciclismo ainda é um esporte pouco difundido e a bicicleta um meio de transporte ainda pouco utilizado. Falta de incentivo para a prática, preço dos equipamentos, mas principalmente, falta de estrutura nas cidades brasileiras impedem que o esporte e o meio de transporte cresçam por aí. Uma pena.
Pena porque em se tratando de meio de transporte, é o mais limpo de todos, e além disso o mais saudável. Invejo os países europeus em que as pessoas não têm carro e podem fazer tudo a duas rodas.
Pena porque como esporte, é fenomenal.
A prova disso é o Tour de France (Volta da França). Para quem não sabe essa é a mais famosa corrida de bicicletas do mundo. Acontece todo ano no mês de julho na França, mas passa por alguns países fronteiriços também. Criada em 1903, hoje envolve cerca de 200 competidores, e percorre durante 3 semanas cerca de 3500 km. Como infraestrutura, depois da Copa do Mundo e Olimpíadas, é considerado o maior evento esportivo do mundo. Milhares de pessoas desembarcam em terras francesas e em caravanas seguem o “Tour”, para apenas verem o pelotão passar durante alguns segundos (a média de velocidade é de cerca de 40 km/h e geralmente todo mundo fica junto). Mais uma vez, pergunto, mas por quê? A resposta que alcancei vem do brilho dos olhos das crianças que me vêm desfilando pelas ruas da Maxixe. É um fascínio inerente pelo ciclismo que todos nós temos desde criança. Afinal, um dos momentos mais marcantes da nossa vida são os primeiros tombos de bicicleta. É ali que finalmente adquirimos nossa primeira independência. É o desejo daquelas crianças tornarem-se independentes. Além disso, voltando para a análise do “Tour” é o limite humano posto em prova dia após dia. Que pena que hoje esteja mascarado pelo doping e outros motivos. Mas no começo, era apenas o homem, a bicicleta, a estrada e o alvo – chegar ao fim de mais uma jornada. 

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

ET no Mundo!


Você já se sentiu um ET nesse mundo? Se não, vem comigo para Moçambique. Basicamente, a população da província que moro (Inhambane) é constituída por mais de 95% de negros.  Dessa maneira, é raro encontrarmos brancos andando pelas ruas, pois os que existem, andam de carro. Assim, a sensação de ser um “gringo” faz parte da vida diária. Apesar de estarmos aqui a mais de 2 anos, toda vez que saio de casa, é como se um ser de outro mundo estivesse desfilando pela rua.
O hospital fica a 150 m da minha casa, na mesma estrada. Na frente do hospital, existe uma creche para os funcionários. Muitas crianças ficam brincando no pátio pela manhã, e apesar de passar ali todos os dias na mesma hora, sempre é a mesma coisa – um coro sem fim se inicia: “Tchauô, Tchauô... ou bye-bye”. Até mesmo os outros transeundes começam a rir da situação.
A minha atividade física por essas bandas é andar de bicicleta. Faço 2 tipos de rotas. Uma no asfalto até o centro da cidade. E outro, pela estrada de terra e areia para o lado contrário, ou seja, para os bairros. Como um bom cirurgião do trauma, eu aprendi que prevenção é o melhor remédio. Assim, eu sempre saio com luvas nas mãos e um bom capacete. Esse item de segurança aqui, não é visto nem entre os motociclistas. Então imagine, se apenas a cor da minha pele já me torna algo de outro mundo, associe com a bicicleta e aquele capacete bonito de ciclista. É um ET pedalando pelo mundo. Da mesma forma que as crianças na frente do hospital sempre me saúdam, quando ando de bicicleta é a maior festa. Quando vou na estrada de terra, rural, é uma história. Quando vou para a cidade, a mesma. Não apenas as crianças mexem comigo. Também os jovens, os homens e mulheres e até os velhos. A palavra que mais ouço é “mulungo – branco no dialeto Xitswa”. Mas também ouço, olha o ciclista, good morning, bye-bye, tchauô, yeê, etc, etc, etc.
Confesso que essa sensação é única. Muitas vezes é incômodo, outras vezes é simpático, a verdade é que a gente nunca se acostuma. No fundo vou sentir falta de sentir-me diferente. Se você acha que é muito indiferente a todo mundo aí no Brasil, faz assim, dá um pulo aqui na África e sinta-se como eu, um ET no mundo! 

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Anestesista versus Cirurgião


Na semana passada, dia 16 de outubro, comemorou-se o dia do anestesista. Foi neste dia que Morton em 1846 aplicou a primeira anestesia geral a base de éter. É dessa figura enigmática e da sua estreita relação com o inseparável cirurgião que eu gostaria de divagar.
A cirurgia só pode verdadeiramente se desenvolver a medida que as novas técnicas anestésicas e drogas foram inventadas a partir de meados do século 19. Desde então a dependência do cirurgião pelo anestesista aumentou paulatinamente, de modo que muitos não fazem nenhum procedimento sem seu escudeiro fiel. Contudo, quando se trata principalmente do serviço público essa relação de dependência muitas vezes se torna bastante acirrada. Todas as situações que já havia vivenciado no Brasil, repetiram-se aqui na África, provando que não é um problema cultural, mas laboral.
A dependência do cirurgião mexe com muitas áreas que geram conflito. A maior delas, o ego. O do cirurgião é maior, claro, mas na busca de impor o seu, o anestesista, as vezes, extrapola suas razões, e a briga se inicia.  No final quem sempre sai perdendo é o paciente.
O apetite cirúrgico muitas vezes é o pé de Aquiles do cirurgião e é nele que sempre o anestesista vai atacar. Quando o cirurgião comete um pequeno deslize, por exemplo, esquece de pedir um determinado exame, pronto, cirurgia cancelada, menos um paciente.
No Brasil, existe a lenda de que em congresso de Anestesiologia, a conferência mais esperada é a cujo tema aborde: “como cancelar ou suspender uma cirurgia”.
Aqui na África, eu dou mil razões para os meus caros colegas não quererem trabalhar. Primeiro, eles são técnicos que fazem trabalho de médico, em infra-estrutura limitada, ganhando como técnico. Mas como o meu apetite cirúrgico muitas vezes é grande, muitas discussões já foram geradas. Outras vezes, eu preferi engolir a seco a raiva e vim me lamentar com o travesseiro.
No final eu fico pensando as razões do “boom” das cirurgias ambulatoriais (hospital-dia). Será que é para poder liberar o doente no mesmo dia? A verdade é que essa foi a maneira mais eficaz do cirurgião ficar finalmente livre do anestesista e fazer suas “loucuras” em paz. Voltar ao simples, ao passado em que ele tinha que anestesiar e operar ao mesmo tempo.
Aqui na África existem muitos hospitais em que ainda não temos anestesistas em que o cirurgião faz a raque e depois a cesareana. Graças a Deus eu não tenho essa necessidade, mas será ela de todo ruim?
Infelizmente sim, e o anestesista sabe disso, e por mais modismos que existem, o cirurgião vai sempre depender do anestesista que sempre vai ter o trunfo da palavra final e essa briga nunca terá fim, a não ser que a gente desça o pedestal e diga: “viva o anestesista, parabéns pelo seu dia!”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Desânimo

Vista da Janela do meu quarto
Já faz um tempinho que eu não escrevo nada nesse blog. A verdade é que ando meio sem inspiração, meio desanimado. A vida por aqui não tem sido fácil. Estou entrando no meu limiar, tanto é que uma gripe forte me atacou desde ontem. Estou com febres, como a muito não tinha. Pelo menos o primeiro teste de malária veio negativo. Amanhã acho que vou repetir, just in case. O tempo aqui anda meio maluco. Na segunda e terça fez um calor já digno do verão. Ontem e hoje voltou a refrescar. Essa é a época das ventanias. Minha casa fica na frente de um corredor de pinheiros, a 50 metros de altura de uma espécie de falésia  que termina na baía de Inhambane. Assim quando a ventania começa o barulho dos pinheiros balançando é bem alto, as vezes dá até medo de um cair. Mas o que cai mesmo são aqueles raminhos secos que enchem o jardim e o telhado da casa. Tanto é que no primeiro ano nosso aqui, quando as chuvas vieram (em dezembro), começou a vazar água pelo nosso ventilador de teto (que apesar de novo, não resistiu e queimou) e das tomadas de luz. Só depois de alguns meses, quando subi no teto/lage para ver a situação é que percebi que o problema era devido a esses raminhos que obstruiram a passagem de água pelos drenos. Aí começou a operação de limpeza. Removi mais de 10 sacões lotados desses raminhos. No mês passado, prevenindo o tempo das chuvas retornei a lage e tirei mais 8 sacos. Trabalhão. Mas de toda forma vale a pena ficar ouvindo o som do vento balançando esses pinheiros, principalmente hoje que não estou me sentindo bem e só estou com vontade de ficar na cama, com o corpo todo dolorido e um grande desânimo. Como dizem aqui quando se despede de uma pessoa: força!

sábado, 2 de outubro de 2010

Culinária Moçambicana - Parte 2

Desossando a pata do cabrito
Caril de Cabrito (Curry)
Esse não pode ser considerado um prato típico moçambicano. Contudo, é frequentemente consumido, principalmente nas festividades. Essa receita em particular, parece bastante bizarra. Mas tive a oportunidade de preparar após ganhar duas patas frescas de um cabrito, e só posso dizer, é fenomenal. Como o cabrito não é uma carne muito consumida no sudeste brasileiro (exceto norte de Minas), se você tiver a oportunidade de comprar e quiser experimentar, não vai se arrepender.
Ingredientes (para duas pessoas):
-       400 g de Cabrito
-       1 cebola picada
-       2 colheres de sopa de manteiga
-       2 tomates sem pele
-       2 folhas de louro
-       1 punhado de uvas-passa
-       1 colher de sopa de pó de curry
-       1 xícara de caldo de carne/galinha
-       1 xícara de leite
-       1 colher de sopa de café instantâneo
-       1 xícara de leite de côco
-       Sal e pimenta do reino a gosto
-       3 sacudidas de molho Tabasco
-       1 dose de conhaque
-       1 colher de sobremesa de farinha de trigo
Modo de preparo:
Lave o cabrito em água fria, seque bem e corte em cubos. Numa panela, caramelize a cebola na manteiga e depois acrescente a carne até ficar dourada. Acrescente o curry, passas, louro, tomates e o caldo de carne e cozinhe em fogo baixo até reduzir a metade. Acrescente o leite, a pimenta do reino, o sal e o Tabasco. Cubra e cozinhe em fogo baixo por 1 hora. Dissolva o café no leite de côco e misture ao molho de forma que este engrosse (pode usar a farinha de trigo dissolvida em um pouco de água ou no leite de côco). Antes de servir adicione a dose de conhaque ao molho. Sirva com arroz.
Bom apetite!

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O Sistema de Saúde de Moçambique

O sistema de saúde de Moçambique é bem diferente do nosso. Por mais que se tente copiar isso ou aquilo do sistema brasileiro, a falta de tudo limita o sucesso do mesmo. Isso se podemos dizer que o SUS é bem sucedido.
Os serviços de saúde não são 100% grátis. Há uma cobrança simbólica para cada tipo de serviço. Por exemplo, uma consulta ou uma receita médica custa 5 meticais, cerca de 25 centavos de real. Cada dia de internamento fica em 10 meticais. Uma cirurgia custa 100 meticais. As vezes, pela desorganização, ou motivos sociais, esses valores não são devidamente cobrados. Um detalhe é que o estrangeiro tem uma tabela de tarifas diferentes (cerca de 10 vezes mais cara). Por exemplo, a consulta passa a ser 50 meticais (cerca de 2,50 reais). Alguns medicamentos são grátis como os do coquetel anti-HIV, os antimaláricos e o tratamento da tuberculose e hanseníase.
A falta de trabalhadores de saúde é generalizado. Não há médicos, enfermeiros, e auxiliares ou técnicos de enfermagem suficientes. A falta de recursos é tão grande que muitas vezes não há dinheiro para novas contratações, nem mesmo para faxineiros. Assim o sistema anda sobrecarregado. Os profissionais são sujeitos a escalas desumanas, as férias são sempre sacrificadas, e os salários sempre baixos e sem reajustes. Nesse momento que escrevo, uma greve no setor de saúde está sendo organizada para o dia 25 de setembro, feriado nacional. Devido algumas heranças comunistas, greves em Moçambique são sempre algo complicadas, mais ou menos inaceitáveis pelo governo, imagine vinda do setor da Saúde, vejamos.
Na África, falta de mão de obra qualificada sempre foi um problema. Na área de saúde, arranjaram uma maneira de tentar aliviar esse problema. Criaram cursos profissionalizantes de medicina, cirurgia, pediatria, anestesia, enfermagem, etc. Assim hoje, grande parte da mão de obra é composta por esses “técnicos” que fazem o mesmo trabalho do enfermeiro superior, do médico e alguns especialistas.  A grande sacada dos governantes tem lógica simples. A formação de um médico é longa e cara. O seu salário é alto. Ele faz muitas exigências. Ele raramente quer permanecer no interior. Já com o curso técnico, enxuga-se no tempo de formação, no salário, ele permanece onde é mandado e faz praticamente, senão o mesmo trabalho de um médico e de alguns especialistas. Simples assim. Nem tanto. Mesmo assim faltam técnicos, assim muito do serviço deles ficam por conta de enfermeiros de nível básico ou médio, que acabam prescrevendo o que eu chama de coquetel padrão (um antibiótico e um analgésico ou um antimalárico com um analgésico).
Uma outra forma de “tapar esse buraco” foi a contratação de médicos estrangeiros. Pela íntima relação no passado com o bloco socialista, existem em Moçambique muitos médicos cubanos, chineses e até vietnamitas. Os cubanos são a maioria. Vem através de um convênio direto com o governo cubano. Como em Cuba o médico recebe uma miséria (cerca de 20 dólares/mês – acredite se quiser), a vinda deles para cá é uma forma de receberem um pouco mais (cerca de 500 dólares/mês – o governo Moçambicano paga 1000, mas eles tem que devolver 500 para os cofres do Fidel). Como eles mesmo me dizem, essa é a chance deles poderem voltar e comprar um televisor.
Em Moçambique existem apenas 4 faculdades de medicina que juntas formam menos de 100 médicos por ano. Duas delas  são bem novas, uma privada e outra pública, e ainda não formaram nenhum profissional. As faculdades públicas (subdisiadas pelo governo) cobram uma taxa simbólica semestral por cada cadeira. O currículo que durava 7 anos, baixou para 6 anos em 2009.  Após a graduação o médico é enviado para o distrito (interior) onde obrigatoriamente tem que permanecer por no mínimo 2 anos, como forma de “pagar” o subsídio do governo. Apenas após esse período é que ele tem o direito de voltar para trabalhar na capital ou de fazer uma residência médica ou mesmo de clinicar de forma privada.
Clínicas particulares são raras em Moçambique. Estão concentradas na capital. Contudo, em Moçambique, há apenas um pequeno hospital geral privado. Além disso, existe uma clínica privada dentro do principal hospital do país. Foi a maneira que alguns médicos, muitos deles envolvidos na política, encontraram para arrecadar alguns dólares a mais no fim do mês. Dessa forma, criaram dentro da instituição pública uma área VIP. Em horários especiais são feitas cirurgias exclusivamente para esse público. Dizem os boatos que o atual presidente da república está envolvido na construção do primeiro hospital privado de Maputo.
Em suma, se você um dia vier em Moçambique, torça para não ficar doente. Se isso acontecer, vá a um centro de saúde ou a um hospital mais próximo, pague um preço mais caro que os outros pela consulta, seja atendido por um técnico ou por um cubano, receba uma receita padrão, dê sorte de encontrar o medicamento prescrito e seja o que Deus quiser no seu tratamento. Na volta ao Brasil pense duas vezes antes de reclamar do SUS. 

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

A Roda


Moçambique não é um país violento (comparado com o Brasil). Pelo contrário, as oportunidades que tive de andar pelas ruas de Maputo, mesmo a noite e no centro, me senti bem seguro. É claro que sempre ouvimos notícias de alguns pequenos assaltos e até de seqüestros. Entretanto já fomos abordados muitas vezes por policiais pedindo o nosso passaporte, perguntando – o que é que vocês estão fazendo a essa hora da noite aqui? Dizem que no passado era pior e hoje já é bem melhor. Os ladrões na maior parte das vezes, são os de galinhas. Roubam pequenas coisas. Os principais alvos são os carros. O nosso carro já foi vítima algumas vezes. A primeira vez foi quando fomos de férias para o Brasil e deixamos o carro estacionado na Igreja (com vigia). Certo dia, ainda no Brasil, recebo um email dizendo que roubaram o meu carro. Assustado, pensei: como é possível se estava na garagem com vigia? Mas não roubaram o carro e sim do carro. Retiraram as luzes do pisca, retrovisores e faróis. A segunda vez, foi quando a passeio por Maputo, tínhamos feito muitas compras e havíamos deixado no porta-malas como de costume. Fomos a um restaurante à noite. Quando voltamos, vimos que a janela havia sido quebrada e tudo que havia no porta-malas se fora. O rádio nem foi tocado! Mas nada supera a experiência da roda.
Um amigo missionário alemão tem um carro igual ao nosso. Certo dia, ele teve que viajar para Maputo. Como tinha estourado seu pneu sobressalente e não havia como comprar outro aqui, ele pediu emprestado o do meu carro. Beleza. Quando ele voltou, não estávamos em casa então ele deixou a roda na casa de hóspedes (tipo um hotel da igreja) que fica ao lado da minha casa. No dia seguinte quando fomos lá pegar o pneu, a diretora da casa diz que alguém entrou lá à noite (mesmo com o vigia) e roubou a roda.
É comum aqui a venda de peças automotivas pelas estradas, principalmente pneus, rodas e acessórios. Na verdade, na ocasião do primeiro roubo, após procurar em todas as lojas de Maputo, tivemos que recorrer ao “mercado negro” para adquirir de volta (literalmente) as peças roubadas. Dessa forma, mandamos pessoas alertarem revendedores dessas peças aqui em Maxixe que o meu pneu, assim, assim, assado, havia sido roubado. Contudo, mais de um mês se passou e nada de aparecer o pneu. Sempre que eu passava de carro pela estrada ou ia aos mercados procurava minha roda, nada. Assim, sem solução, tive que pedir um amigo que foi a Maputo para comprar-me outra roda e pneu sobressalente para o meu carro. Mais um prejuízo.
Cerca de 6 meses depois eu fui dar uma volta de bicicleta. Na verdade tinha planejado de fazer uma grande jornada de cerca de 50 km (ida e volta) até outra cidade. Ainda no início da viagem, do outro lado da estrada vejo um pneu parecido com o meu, a mostra no meio fio da estrada. Pensei, é impossível, já se passa tanto tempo, devo ter visto errado, na volta eu confiro, não quero perder a concentração da minha pedalada. Na volta, bastante cansado e já completamente esquecido da roda, passo em grande velocidade pelo local aonde o pneu estava (o lugar é uma grande descida). Mas de relance, vejo novamente o pneu e agora convencido, dou uma grande freada e retorno ao local. Aparece uma moça que estava cuidando da “loja”. Pergunto pelo dono. Não estava. Explico que aquele pneu era meu, que havia sido roubado. Ela desconversa e eu insisto em falar com o seu chefe. Consigo o seu telefone, mas ele não atende. Bastante agitado, saio a procura de um amigo para ver se podia me ajudar naquela inusitada situação, mas ele não estava em casa. Já era fim de tarde, começava a escurecer então eu resolvo continuar o meu caminho de volta para casa (faltava uns 6 km). Inconformado, decido mudar a rota e ir diretamente para a esquadra da polícia dar queixa. Chego lá todo suado, com roupa de ciclista, uma caricatura, reclamando que o meu pneu roubado estava sendo vendido no meio da estrada. Os policiais foram bastante simpáticos comigo (porque com alguns “suspeitos” que traziam tratavam como animais). Eles conheciam o sujeito dono da loja. Decidiram ir comigo até lá. Chegando no local, confiscaram a roda e pediram para o dono ir até a esquadra. Ele foi mas levou outro sujeito consigo. Na investigação, o dono disse que apenas estava revendendo o pneu que pertencia a esse outro sujeito. Este disse que havia adquirido o pneu de outro sujeito “desconhecido”. Me perguntaram como eu tinha certeza que aquele era o meu pneu/roda roubado. Foi fácil, eu tinha uma foto no meu celular tirada antes do pneu ser roubado ainda no meu carro. Como a única coisa que eu queria era o meu pneu de volta (na época custava cerca de 400 reais), e os outros também não queriam confusão, decidimos que eles devolveriam o pneu e eu não daria queixa de roubo. Já bem escuro, ainda tive que voltar para casa, pegar o carro e voltar a delegacia para pegar o pneu. Mas valeu a pena aquela longa jornada. Muitos me chamaram de louco, dizendo que alguém poderiam vir a minha casa ou me agredirem na rua. Fiquei preocupado durante um tempo. Graças a Deus nada disso ocorreu e já se passam 12 meses. O único problema é que agora fiquei com um sobressalente a mais. Alguém quer comprar essa roda?

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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A vida como ela é

Em tempos de modernidade, um grande desafio é viver com simplicidade. Viver sem alguns confortos da grande cidade. Essa é ainda a realidade do campo missionário. Mas não é de toda ruim.

Na verdade, ainda nos consideramos privilegiados por tudo que temos. Quando pensamos na África, mais especificamente, em Moçambique, pela primeira vez, pensamos em algo muito mais primitivo, contudo em muito nos surpreendemos.

O básico: luz, água e telefone. Temos, mas as vezes... A luz, como já referi em outro artigo, de vez em quando desaparece. Normalmente na hora que você mais precisa dela. A água vem do poço artesiano do hospital. É de boa qualidade. Depende de bomba elétrica. Até ano passado, não tínhamos uma caixa d’água, assim ficávamos freqüentemente sem água também. Uma coisa curiosa é o chuveiro elétrico. Há 2 anos foi abolido em nossa casa, devido a um defeito na tubulação. Agora, tomamos banho de caneco. E digo que é bom. E a economia da água é absurda, não é Juju e Felipe? (faça o teste em casa). Telefone aqui é celular. A etapa do fixo foi transpassada pela nova tecnologia. Assim em qualquer lugar que você vá e qualquer pessoa, já tem um aparelhinho. Pena que a rede não é confiável. As vezes, some o sinal, fica um, dois, mais dias sem sinal.

O moderno: televisão, internet. Essas novas tecnologias também estão disponíveis. Em Moçambique temos 3 canais abertos de televisão. Uma do governo, outra duas privadas, sendo uma delas, a mais nova, uma filial da rede Record. Os programas mais famosos por aqui são as novelas brasileiras. Normalmente chegam com algum atraso. A Record passa suas mesmas novelas. As outras duas passam mais novelas da Globo. Existe também a TV a cabo (em Maputo) ou a satélite (todo o país). A TV em satélite é muito bem servida, inclusive com canais brasileiros com Record, Globo, PFC, Record News e outros. A internet também está presente. Infelizmente está longe de ser tão confiável ou barata. A verdade é que paga-se caro para um plano de banda larga, mas o serviço funciona quando quer. Não adianta reclamar. Não há abatimento na conta (mesmo quando ficamos 15 e até 30 dias com o serviço indisponível!). Existe aquela internet de flash drive que vem pelo celular. Mas da mesma forma é muito cara e não confiável.

O comércio aqui ainda é bem rudimentar. Como existe uma grande dependência dos produtos externos, a disponibilidade dos produtos é oscilante, bem como o preço. Não consigo explicar a maneira de compra. Existem os indianos (a maioria – roupas, alimentos industrializados), os portugueses (material de construção) e os sulafricanos (supermercado geral) Os moçambicanos estão mais restritos ao comércio informal (dubanengues), nas feiras populares e na revenda de produtos “doados”.

Os meios de transporte comerciais são o avião e os ônibus (machimbombos). O avião ainda para poucos tem rotas da capital da província (Inhambane) para Maputo e Joanesburgo. Para outros lugares, pode-se pegar esses ônibus, que são muito velhos e viajam superlotados (de pessoas e de outras coisas). Para deslocamentos mais pertos, existem os “chapas” ou vans, que estão espalhadas por toda a África e são de longe o tipo de transporte mais difundido, mas totalmente informal, e claro, inseguro e lotado.

Um detalhe: por aqui dirigi-se do lado do esquerdo (volante à direita), algo difícil de se acostumar, que prega alguns sustos no início, por exemplo, quando você vai atravessar a rua e olha para o lado errado.

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sábado, 4 de setembro de 2010

Manifestações em Moçambique:


Alguns de vocês provavelmente já devem ter ouvido ou lido a respeito das manifestações atuais em Moçambique.  Alguns já enviaram emails perguntando sobre a nossa situação.
O mais importante é que estamos todos bem. O problema está relacionado com o súbito aumento dos preços dos alimentos, combustíveis, água e luz nos últimos 2 meses. Como a população não tem nenhum reajuste salarial há mais de 1 ano, a parte mais desfavorecida, resolveu sair as ruas e provocaram manifestações na quarta-feira com alguns mortos e muitos feridos na cidade de Maputo (capital do país). A cidade permaneceu em estado de sítio até ontem. Como moramos no interior, não fomos atingidos por estas manifestações. Pelas notícias boca a boca, nem seremos. Além disso, nesta última semana nossa internet tem estado frequentemente fora do ar. Dessa maneira, tem sido difícil atualizar o blog e enviar emails. Peço a todos paciência.
Ainda peço que continuem intercedendo pela situação instável do país e em favor dos muitos que estão literalmente passando fome.


Atenciosamente.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Trivial mas problemático


O que é trivial na sua vida? Até eu vir morar na África, muitas coisas do meu dia a dia eram triviais. Nenhuma delas um problema. Acho que eram tão triviais que eu nunca dei muita importância.
Por exemplo, cortar o cabelo. Por mais chato que seja, quando a gente precisa, em qualquer esquina se pode encontrar um cabeleireiro ou um barbeiro, caro ou barato, que dê conta do recado. Mas só depois de 3 meses aqui na África, quando a minha juba estava no limite é que eu percebi que aquilo não era mais trivial, era um problema.
Já tinha visto alguns salões espalhados pela cidade, então no dia que precisei, escolhi o mais arrumadinho e “vamu-lá”. Levei a esposa, claro, para me ajudar naquele momento crítico. O atendente, um jovem de uns 20 poucos anos. Perguntei-lhe se sabia cortar o meu cabelo (aqui > de 95% da população é negra). Ele disse, de forma não convincente, sei sim, não tem problema. Quanto é? São 100 meticais (na época uns 7 reais). Beleza. Então minha esposa entrou em cena, e foi-lhe explicar como era para se cortar. Pensei, agora eu fecho o olho e seja o que Deus quiser. Com  grande insegurança (ele nem sabia pegar na tesoura direito), ele começou a cortar aqui, ali, 30 minutos depois, ali aqui e aquela coisa maravilhosa, eu suando de medo de perder uma orelha, Cláudia quase pegando a tesoura da mão dele, não é assim não, é assim. Não corta aí não. Eu pensei, até que decidi e falei: - jovem, deixa essa tesoura de lado, pega a máquina 1 e capricha. Que diferença no manuseio daquele novo instrumento. Trinta minutos depois, enfim fui embora. Careca e traumatizado, claro.
Depois disso, numa ida a Maputo, comprei uma máquina para mim. Das 2 próximas vezes, Cláudia foi a barbeira. Mas quem disse que a gente sabia usar a máquina. Um barulho ensurdecedor. Parecia que estava avariada. Havia um parafuso que não estava bem regulado,  e que só depois, a vizinha nos ensinou a usar. Depois disso resolvi deixar o cabelo crescer de novo. Voltei ao Brasil nas férias e pude acertá-lo por lá. Mas como faria ao retornar? 3 meses depois, em viagem a Maputo, fui a procura de um novo salão. Encontrei um e no desespero entrei e encarei. Dessa vez o atendente sabia manusear a tesoura, mas mais parecia que estava podando uma árvore do que cortando um cabelo. Uma velocidade incrível. Ficou tudo repicado, tudo em pé, praticamente um corte de máquina com a tesoura. Desisti, compramos uma tesoura e  um pente e da próxima vez, a Cláudia faria o trabalho. Quando voltei de Maputo, pesquisando no site do consulado do Brasil em Maputo, descobri um guia para chegada em Moçambique. Nele, havia uma lista de salões recomendados para brasileiros. Tarde de mais, a partir de então, Cláudia virou minha cabeleireira oficial. As primeiras 2 vezes, não foram nada fáceis. O resultado foi ótimo. Mas fiquei de castigo num banco duro por mais de 1 hora, morrendo de medo de perder uma orelha. Agora ela já está craque, assim quando voltarmos, quem sabe ela não muda de profissão e abre uma barbearia? Bem, quem precisar é só falar. Demora, mas o resultado é muito bom.
Essa história toda para mostrar quanto uma coisa trivial, torna-se super problemática por aqui.  São muitos outros exemplos. É só você pensar em qualquer outro tipo de prestação de serviço. Arranjar o carro, não tem peça. Comprar coca-cola (aqui troca-se garrafas de 300 mL), acabou. Restaurante, temos 2, mesma comida nos dois, já enjoei. Shopping, só em Maputo, pequeno. Cinema, esquece, só na África do Sul. A descarga está vazando? Tem que comprar uma nova. Não há peça para reparo. Lixeiro, não tem. Queima e enterra. Correio, só na cidade. Em outubro tem eleições presidenciais, além de obrigatória, você tem noção de quanto é chata a justificação para brasileiros no exterior? Assim, a lista vai sem fim.
Lições aprendidas: 1) consultar antes o guia do consulado do Brasil para onde eu vou; 2) reclamar menos do Brasil, exceto da política, porque essa, só a graça...

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Culinária Moçambicana – Parte 1

Caril de Camarão:
Para não só falar de coisas médicas ou tristes, um dos meus hobbies em Moçambique tem sido a culinária.
Em Moçambique, tanto a influência portuguesa, quanto a indiana, é marcante na culinária. A portuguesa obviamente devido a colonização. Já a indiana é um caso mais curioso. Moçambique foi um dos pontos de apoio de Portugal para o caminho das índias. Desde o século 19, muitos imigrantes indianos se instalaram na África do Sul e em Moçambique, fugindo da guerra com os ingleses. Depois se espalharam para o resto do continente. Atualmente em Moçambique, eles são os “donos” do comércio. É curioso ir ao centro da cidade fazer compras e encontrar as lojas indianas e os seus rudes vendedores. É vendo para entender.
Já o camarão é um dos principais produtos de exportação de Moçambique. A longa faixa costeira do oceano Índico é rica em muitas espécies. O mais famoso, o cobiçado camarão VG (tigre).
Dessa influência e combinação surge um dos pratos mais saborosos que aqui já desfrutei e que tenho o prazer de preparar e compartilhar com vocês. É o caril de camarão ou o curry de camarão. Não tem mistério.
Ingredientes (4 porções):
- 1 kg de camarão (quanto maior melhor), sem casca e sem cabeça;
- 2 cebolas picadas;
- 1,5 cm de gengibre fresco e espremido;
- 2 dentes de alho espremidos;
- 1 colher de sopa de pó de curry (se está familiarizado com a culinária indiana pode substituir pelos temperos separados, a proporção que quiser);
- 1/2 colher de chá de açafrão em pó;
- 1 pimenta vermelha pequena picada sem sementes (opcional);
- 500 ml de leite de côco;
- 1 colher de sopa de farinha de trigo;
- coentro fresco (opcional);
- 2 colheres de chá de sal.
Modo de Preparo:
Em um fio de óleo, doure a cebola, depois o alho e o gengibre, depois o pó de curry, depois o açafrão. Acrescente um pouco de água para desgrudar o fundo. Coloque o leite de côco até ferver. Acrescente os camarões e aguarde ferver novamente. Coloque o sal. Abaixe o fogo e deixe cozinhar por 15 minutos. Acrescente a farinha de trigo dissolvida em um pouco de água fria até obter a consistência desejada. Tampe e retire do fogo. Decore com folhas de coentro picadas e sirva com arroz branco e chapatis (pão indiano – ou então pão sírio).
Bom Apetite!
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terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Médico e o Monstro


Já ouviram falar da obra do autor Robert Louis Stevenson, Jekyll & Hyde?

Para quem nunca ouviu, trata-se de um médico (Dr. Jekyll) cientista que inventa uma fórmula mágica que o transforma inconscientemente num monstro (Sr. Hyde). Numa dessas transformações o monstro mata uma menina e faz outras atrocidades. Um advogado, amigo do Dr. Jekyll, investiga o crime e através de uma carta deixada pelo monstro, através da datilografia, desconfia tratar-se de seu amigo. Com o tempo e com as provas, Dr. Jekyll vai descobrindo que é a mesma pessoa que o Sr. Hyde. Com remorso das maldades realizadas por si, Dr. Jekyll decide não mais tomar a poção e começa a fazer obras de caridade. Em certo ponto, ele vê-se redimido, mas mesmo sem tomar a poção começa a sofrer a metamorfose involuntariamente. Como ele havia jogado fora a fórmula, não consegue inventar uma maneira de reverter as metamorfoses que tornam-se cada vez mais freqüentes. Percebendo que no fim tornar-se-ia Hyde permanentemente, Dr. Jekyll deixa um testamento dizendo que finalmente deixaria de ser um charlatão e tornar-se-ia em algo genuíno.
O discutido tema “o bem versus o mal” é a análise teológica mais freqüentemente discutida sobre esse livro. Mas eu não quero falar de coisas já discutidas, tampouco quero falar sobre teologia.
O que me fez a refletir sobre esse tema foi a minha própria figura, um cirurgião, um missionário, médico ou monstro?
A figura do missionário e do médico são míticas. Sinônimo de bom caráter, de caridade, de salvação.
A figura do cirurgião é mais controversa. Para alguns e para muito deles um “deus”. Para outros um terror. Existe coisa mais monstruosa que uma grande cirurgia. Todo aquele sangue derramado. Toda dor provocada. Por mais salvadora que seja, ninguém quer passar por uma.
O trabalho médico em terras africanas não é fácil. A carência de tudo, torna aquele que sabe um pouquinho mais num “deus”. Mas ninguém é “Deus”, temos limites técnicos, físicos, mentais e espirituais. O problema é uma questão de limites. O limite entre o que você sabe e o que você não sabe, entre o que você e o seu hospital suporta ou não. Muitas vezes, no hospital rural, esses limites são freqüentemente ultrapassados. Pergunto-me, estarei me transformando num monstro? Ou já sou um por natureza, por profissão?
A tentativa de salvação de uma vida também não é para qualquer um ou para qualquer lugar. As limitações estruturais também podem transformar um milagre num desastre. O que dizer das longas cirurgias de urgência que encontrariam uma vaga de CTI no Brasil e que aqui ficam ao bel prazer de técnicos de enfermagem (na maior parte das vezes 1 para cada 40 leitos!). Agora imagina essa situação, sem sangue disponível e/ou sem oxigênio e/ou com apagão noturno! Só a graça de Deus. E digo mais, ela existe. Prova disso é que muitos desses pacientes sobrevivem. Mas em outros casos... é o monstro atormentando mais uma vez.
Um monstro por não ter mais forças. Um monstro por não respeitar os limites. Quais são os limites dessa metamorfose? Será um sentimento de um missionário? Ou será um sentimento de um cirurgião? De um médico ou de um monstro? Limites... Deus me ajude.
Nota: para quem gosta de música, sugiro uma para reflexão:
Jekyll and Hyde – Petra
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segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Lanterna de Cabeça

Como pode um hospital funcionar sem luz e conseqüentemente sem água? (a água depende de uma bomba elétrica)
Essa é uma pergunta que me faço todos os dias e até hoje não consigo responder.
A realidade dos hospitais africanos que conheço é dura. No que eu trabalho, parece pior. Há muito sofremos com falta de pessoal de enfermagem, falta de materiais de consumo hospitalar, falta de medicamentos. Mas o que mais me machuca, é a falta de luz. Como pode um hospital funcionar sem luz, refaço pergunta. A verdade é que ele funciona aos trancos e barrancos. Já estamos tão acostumados com a miséria do povo, com falta de saúde da população, o que é mais uma noite sem luz? Sem ao menos uma vela!
No Brasil, quando acontece um apagão é notícia para os meios de comunicação durante 1 semana. Lembro-me de quando estava na residência de cirurgia geral, no estágio de CTI, e numa noite chuvosa, um blecaute no bairro ocorreu e uma falha no gerador do hospital, fez com que todos enfermeiros e médicos tivessem que ficar ambuzando os pacientes entubados durante uns 30 minutos. Um desespero sem fim. Graças a Deus todos se safaram.
Aqui em Chicuque, os “apagões” são freqüentes. Alguns são programados (reparo da linha de transmissão). Outros vêm sem aviso. No verão (dezembro e janeiro) são muito freqüentes. No primeiro ano de trabalho aqui, até o mês de dezembro, não sofri muito com isso, pois o gerador do hospital funcionava. Contudo, na época das festas, a situação da luz foi tão grave, que o gerador avariou.
Na noite de ano novo daquele ano, o caos. Muitos acidentes automobilísticos chegando, um esfaqueado aguardando uma laparotomia e nada de luz. Na maternidade, muitos partos acontecendo. Como o gerador funcionava e o problema era novo, não havia nem velas disponíveis. Tive que vir em casa pegar algumas e distribuir pelas enfermarias. Com luz do celular, fazíamos os partos. A luz só retornou depois da 1 hora da madrugada. Com muito receio, encarei a laparotomia, dessa me safei.
No ano que se seguiu nada foi feito pelas autoridades do hospital e do governo, na verdade, até hoje, 20 meses depois, tudo continua quase na mesma. Ou seja, continuamos sem gerador central. O que mudou é que agora temos lamparinas de querosene nas enfermarias (muitas vezes sem combustível), e a minha mais do que útil lanterna de cabeça. Depois de muita luta pessoal, consegui adquirir um gerador menor para uso exclusivo do bloco cirúrgico. Aliás, hoje (segunda-feira) estreamos o aparelho, em um daqueles cortes programados das 8 até às 14 horas.
Nesse longo período sem gerador, muitas outras situações tenebrosas me afligiram. Cesareanas aqui são o grande volume de urgências cirúrgicas noturnas. Dessa maneira, não foi 1 ou 2 casos que me surpreenderam pela falta de luz. Em 3 oportunidades tive que fazer a cesareana do início ao fim apenas com a salvadora lanterna de cabeça. Um desses casos a paciente era soropositivo. Imagina o estresse.
Bom esse é o meu lado pessoal, mas as enfermarias também ficam largadas. Os pacientes não recebem medicação adequadamente, quando recebem. Só a graça de Deus, para que os doentes graves atravessem uma dessas noites. Muitos, entretanto, não tem a mesma sorte.
O interessante é que apesar de todo esse grande problema, até hoje, nunca ouvi nem na rádio, nem na televisão, nenhuma notícia a respeito, nenhuma reclamação da comunidade. Quanta diferença. Quanto conformismo. Quanta tristeza. O pior é que apesar das melhorias, coisas bizarras continuarão acontecendo, por exemplo, a gasolina do gerador há de acabar e um dia vou ser surpreendido por isso (falta de manutenção). Noutro dia, num corte surpresa, quem disse que vamos encontrar o homem que liga o gerador (vai estar bêbado em algum lugar). Não adianta reclamar, nem alertar, é só estar preparado. Viva a lanterna de cabeça!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Falta de Tempo - Rotina diária!

Vida de médico não é fácil. De cirurgião geral é um pouco pior. Vida de missionário é renúncia. Imagina agora a bomba de tudo isso junto! Não estou falando isso para me gabar. Na verdade, no momento estou sofrendo. Ontem quando iniciei este blog tinha mil coisas em mente já prontas para escrever. Mas é como se algo a mais não deixasse. Esse algo aqui, chama-se "urgências".
Imagine um hospital no meio de uma rodovia federal (a principal do país - que corta do sul ao norte de Moçambique) que cobre uma área de cerca de 500.000 habitantes. Agora imagina uma série de acidentes acontecendo nesta rodovia na mesma tarde e noite e você sendo o único médico para atendê-los.
Foi assim o dia de ontem: fui chamado para o Hospital pois acabara de chegar 1 acidente de viação (é assim que chamam aqui) com 2 vítimas. Controlei a situação, voltei para casa. Dez minutos depois, o telefone toca, outro distrito trazendo mais 1 caso de atropelamento, controlei tudo de novo, voltei para casa. Vinte minutos depois, mais 1 caso do primeiro distrito, queda de bicicleta, TCE moderado. Voltei para casa, 1 minuto depois, raios, dessa vez não deu nem para ligar o computador, 1 atropelamento há minutos, trazido pelo próprio agressor (aqui não tem SAMU, o doente chega de qualquer maneira), e este, para sua infelicidade, tinha sofrido um TCE grave, já chegou nos últimos suspiros, pouca coisa para fazer, infelizmente. 21:30, quem sabe agora eu consigo terminar meu blog. 30 minutos depois, tô cansado, vou mesmo é dormir, amanhã tem mais e nunca se sabe o que vem por aí. Lembra daquele paciente nos últimos suspiros, pois é, o povo daqui é forte, só morre no meio da madrugada, aí eles me chamam de novo só para confirmar o óbito. Já se foi o sono.
Esses foram os acidentes após as 17 horas, não vou contar o restante do dia, nem mesmo os casos não traumatológicos, senão vocês vão achar que estou brincando.
Bem, pelo menos hoje tenho tido tempo para terminar a primeira parte do site. Aquelas idéias, espero que retornem com o tempo. Caso contrário, com certeza novos casos vão aparecer. Só espero que tenha mais tempo para ficar à toa!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Saudações

Caros à toas!

Obrigado por gastarem seu tempo à toa lendo meu novo blog. Há muito tempo tinha o desejo de iniciar esse trabalho, mas a preguiça sempre foi mais forte. Há mais de 2 anos trabalhando como cirurgião em terras africanas, já acomulei muita experiência e muitas histórias que gostaria de compartilhar.
Que médico que nunca sonhou em fazer um trabalho missionário? Bem eu sempre sonhei e digo que já realizei esse sonho. A essência médica é missionária. Não há trabalho mais pioneiro e recompensador do que a missão, tendo um gostinho a mais a transcultural.
O meu objetivo maior é levar a você que sempre sonhou, mas nunca teve a oportunidade de ir ao campo, um pouco do dia-a-dia do médico missionário, especialmente o cirurgião, que é sem dúvida, uma das figuras mais importantes e mais necessárias em qualquer hospital missinário, especialmente quando se trata de África.
Sugiro que antes de continuar a acompanhar esse blog, gaste um pouco de tempo lendo a meu respeito e sobre o lugar que eu trabalho, dessa maneira, você poderá se contextualizar melhor e entender melhor o que eu quero dizer.
Tentarei sempre responder as críticas e perguntas, portanto, não se acanhe, porque em missão não há lugar para timidez, mas muito trabalho para os à toas. Então vem comigo.

Eduardo Maia.