segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Lanterna de Cabeça

Como pode um hospital funcionar sem luz e conseqüentemente sem água? (a água depende de uma bomba elétrica)
Essa é uma pergunta que me faço todos os dias e até hoje não consigo responder.
A realidade dos hospitais africanos que conheço é dura. No que eu trabalho, parece pior. Há muito sofremos com falta de pessoal de enfermagem, falta de materiais de consumo hospitalar, falta de medicamentos. Mas o que mais me machuca, é a falta de luz. Como pode um hospital funcionar sem luz, refaço pergunta. A verdade é que ele funciona aos trancos e barrancos. Já estamos tão acostumados com a miséria do povo, com falta de saúde da população, o que é mais uma noite sem luz? Sem ao menos uma vela!
No Brasil, quando acontece um apagão é notícia para os meios de comunicação durante 1 semana. Lembro-me de quando estava na residência de cirurgia geral, no estágio de CTI, e numa noite chuvosa, um blecaute no bairro ocorreu e uma falha no gerador do hospital, fez com que todos enfermeiros e médicos tivessem que ficar ambuzando os pacientes entubados durante uns 30 minutos. Um desespero sem fim. Graças a Deus todos se safaram.
Aqui em Chicuque, os “apagões” são freqüentes. Alguns são programados (reparo da linha de transmissão). Outros vêm sem aviso. No verão (dezembro e janeiro) são muito freqüentes. No primeiro ano de trabalho aqui, até o mês de dezembro, não sofri muito com isso, pois o gerador do hospital funcionava. Contudo, na época das festas, a situação da luz foi tão grave, que o gerador avariou.
Na noite de ano novo daquele ano, o caos. Muitos acidentes automobilísticos chegando, um esfaqueado aguardando uma laparotomia e nada de luz. Na maternidade, muitos partos acontecendo. Como o gerador funcionava e o problema era novo, não havia nem velas disponíveis. Tive que vir em casa pegar algumas e distribuir pelas enfermarias. Com luz do celular, fazíamos os partos. A luz só retornou depois da 1 hora da madrugada. Com muito receio, encarei a laparotomia, dessa me safei.
No ano que se seguiu nada foi feito pelas autoridades do hospital e do governo, na verdade, até hoje, 20 meses depois, tudo continua quase na mesma. Ou seja, continuamos sem gerador central. O que mudou é que agora temos lamparinas de querosene nas enfermarias (muitas vezes sem combustível), e a minha mais do que útil lanterna de cabeça. Depois de muita luta pessoal, consegui adquirir um gerador menor para uso exclusivo do bloco cirúrgico. Aliás, hoje (segunda-feira) estreamos o aparelho, em um daqueles cortes programados das 8 até às 14 horas.
Nesse longo período sem gerador, muitas outras situações tenebrosas me afligiram. Cesareanas aqui são o grande volume de urgências cirúrgicas noturnas. Dessa maneira, não foi 1 ou 2 casos que me surpreenderam pela falta de luz. Em 3 oportunidades tive que fazer a cesareana do início ao fim apenas com a salvadora lanterna de cabeça. Um desses casos a paciente era soropositivo. Imagina o estresse.
Bom esse é o meu lado pessoal, mas as enfermarias também ficam largadas. Os pacientes não recebem medicação adequadamente, quando recebem. Só a graça de Deus, para que os doentes graves atravessem uma dessas noites. Muitos, entretanto, não tem a mesma sorte.
O interessante é que apesar de todo esse grande problema, até hoje, nunca ouvi nem na rádio, nem na televisão, nenhuma notícia a respeito, nenhuma reclamação da comunidade. Quanta diferença. Quanto conformismo. Quanta tristeza. O pior é que apesar das melhorias, coisas bizarras continuarão acontecendo, por exemplo, a gasolina do gerador há de acabar e um dia vou ser surpreendido por isso (falta de manutenção). Noutro dia, num corte surpresa, quem disse que vamos encontrar o homem que liga o gerador (vai estar bêbado em algum lugar). Não adianta reclamar, nem alertar, é só estar preparado. Viva a lanterna de cabeça!

3 comentários:

  1. Putz, parece o SUS daqui! Cara, DIO TI BENEDICA! Abraços e tô te seguindo daqui!!

    Falcone.

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  2. Tenho de discordar do Marcelo: é bem diferente do SUS daqui!!

    E a lanterna de cabeça é realmente salvadora!!! Quantas vezes já não a utilizei para coisas mais banais no sertão, como para banhar, cozinhar, puxar água no poço, ou até mesmo para matar um escorpião que andava por aí... Obrigada pela lanterna de cabeça!!

    E que Deus continue te ajudando aí!

    Adriana

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  3. Eu disse que era o melhor presente que podia lhe dar. Abraços.

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